Monstro, aberração, pervertido, anomalia da natureza, calculista, psicopata, doente... Esses são apenas alguns dos adjetivos usados para designar os assassinos cruéis. Chamá-los assim parece ter sobre nós o curioso efeito de um pequeno alívio, um desabafo que os apresentadores de televisão, os radialistas e os políticos sabem capitalizar como ninguém em seus discursos sobre a violência. “Quanto mais execramos esses criminosos, mais nos sentimos diferentes deles, como um exorcista que, diante do demônio, fortalece a sua fé”, diz o psicanalista William Cesar Castilho Pereira, professor de Psicologia da PUC de Minas Gerais. “É uma defesa natural para negar o potencial de violência que existe em todos nós”, afirma William.
Quem nunca teve vontade de esganar alguém? Por mais zen que possa parecer, ninguém está livre do arrebatador impulso para a violência. “Assim como em outros animais, a violência faz parte do ser humano”, diz Márcia Regina da Costa, professora de Antropologia da PUC de São Paulo. Especialista em violência de gangues, Márcia diz que esse potencial pode variar de um comportamento agressivo no trânsito, uma briga de torcidas até um assassinato. “A violência é como uma espécie de arquivo de computador não-executável”, diz a antropóloga. “Dependendo do estímulo, ele entra em ação e os resultados podem ser inesperados.” Mas, se é verdade que todos nós temos a capacidade para o mal, por que somente algumas pessoas chegam às vias de fato?
“Assim como ocorre com os nossos desejos sexuais, a vida em sociedade exige a repressão de alguns instintos”, afirma o psicólogo paulista Antônio Carlos Amador Pereira, especialista em desenvolvimento psíquico de adolescentes e adultos. Ou seja: por mais vontade que tenha de agredir alguém, você tem que renunciar a esse desejo para viver em grupo. “Essa é a diferença entre a vida selvagem e a civilização”, diz o psicólogo. “Mas a renúncia a esses instintos nunca é fácil.” No artigo “O mal-estar da civilização”, publicado em 1930, Sigmund Freud descreveu pela primeira vez o conflito existente entre nossos impulsos animais e a repressão desses impulsos pela vida em sociedade. A força resultante desse embate é a culpa – aquele anjinho dos desenhos animados dizendo, no pé do ouvido, que você deve se controlar. Ainda assim, num momento de ira, ninguém estaria livre de cometer algum ato violento.
Se todos os crimes violentos fossem provocados por um momento de descontrole, as explicações acima seriam bastante satisfatórias. Os crimes passionais, portanto, são causados por uma onda incontrolável desse instinto animal que todos temos e que nos faz querer resolver nossos problemas pela via mais simples, direta e distante do raciocínio. Mas como explicar os crimes perversos que foram planejados com a tranqüilidade de quem prepara uma refeição? O que se passa na mente de um seqüestrador que agiu teoricamente em busca de dinheiro mas que não se conteve e estuprou e queimou sua refém?
“São atos que não podem ser simplificados como tendo origem na pobreza, na ignorância ou num momento de descontrole”, diz o psiquiatra americano Jonathan Pincus, autor do livro Base Istincts – What Makes Killers Kill (“Instintos básicos – O que faz matadores matarem”, inédito no Brasil). “Há algo diferente na mente dessas pessoas que as torna capazes de cometer atrocidades sem sentir nenhum remorso.” Lembra a figura do anjinho tentando controlar seus atos para evitar que você cometa um crime e depois se sinta culpado? Para essas pessoas, parece não existir nem o anjo nem a culpa. Popularmente, elas são conhecidas como psicopatas.
Segundo a medicina, psicopatas são, na verdade, portadores do distúrbio de personalidade anti-social, um transtorno catalogado desde 1968, cujos principais sinais são o desrespeito dos desejos, dos direitos ou dos sentimentos alheios e um padrão repetitivo de violação das normas. “A prevalência desse distúrbio na população é estimada em 2,5%”, afirma o psiquiatra Marco Antônio Beltrão, diretor do Instituto de Medicina Social e Criminológica do Estado de São Paulo (Imesc). Segundo essa proporção, o Brasil teria nada menos que 4,5 milhões de pessoas nessa condição – o equivalente à soma das populações do Estado de Mato Grosso e de Sergipe. Muita gente, não?
Ainda bem que nem todos os psicopatas são criminosos cruéis. “Sofrer desse distúrbio não significa necessariamente que a pessoa seja ou se torne um assassino”, diz o neurologista Henrique Del Nero, da Universidade de São Paulo. Segundo ele, na maioria dos portadores desse transtorno, o comportamento anti-social se manifesta por traços como egoísmo e falta de escrúpulos. É aquele colega de trabalho que atropela os outros para subir na vida ou o político que desvia dinheiro de um hospital para crianças órfãs com câncer para sua conta bancária. “Boa parte dessas pessoas também são psicopatas”, diz Del Nero. “Mas menos de um 1% comete assassinatos cruéis.”
O motoboy Francisco de Assis Pereira é um dos que estão nessa lista. Em 1998, ele confessou ter assassinado dez mulheres no Parque do Estado, em São Paulo. A técnica do “Maníaco do Parque”, como ficou conhecido, era seduzir moças e depois estuprá-las e matá-las por estrangulamento. Ao confessar seus crimes, Pereira estava com o olhar sereno. Não demonstrou sinais de emoção ou de arrependimento e disse que, se retornasse às ruas, voltaria a matar. Ao contrário do que muita gente imagina, ser diagnosticado como um sociopata não ajuda em nada na diminuição da pena. O motoboy foi condenado a 121 anos de prisão.
“Os psicopatas sabem que estão fazendo algo errado”, afirma o psiquiatra americano Jonathan Pincus. “Eles simplesmente não sentem que estão fazendo algo errado.” Confuso? Para entender melhor a diferença entre saber e sentir, o psiquiatra conta a história de um paciente não-violento que, após uma cirurgia para a retirada de um tumor no cérebro, passa a urinar na sala de jantar e em outros locais além do banheiro. “Você pergunta se ele sabia que não devia fazer isso. Ele responde que sim, sabia. Aí você pergunta: ‘Por que você fez isso, então?’, Ele responde:
‘Não sei, eu fiz’.” O psiquiatra diz que, por mais que ele saiba que é errado, alguma mudança no cérebro do paciente faz com que ele simplesmente não se incomode nem sinta constrangimento em molhar o assoalho da casa.
Essa consciência do ato no momento do crime é também a principal diferença entre os crimes cometidos por um psicopata e por um doente mental. “O sociopata facilmente se entrega numa conversa, já que fala de seus crimes sem demonstrar nenhuma emoção ou constrangimento”, diz o psiquiatra Marco Beltrão, que já fez o laudo de gente como o professor de Matemática Leonardo de Castro, o homem acusado de ter detonado uma bomba no avião da TAM, em 1997, matando um dos passageiros. (Leonardo não foi considerado nem doente mental nem sociopata.) “O assassinato movido por uma alucinação provocada por doença mental tem um perfil bem diferente.”
Foi o que aconteceu às 15h45 da tarde do dia 31 de março de 1985 na cidade de Itu, interior de São Paulo. O torneiro mecânico Sérgio Berloffa assassinou a mãe com uma faca de cozinha sem nenhum motivo aparente – Berloffa era considerado um filho meigo e carinhoso. A investigação feita mostrou que ele fora movido por alucinações. Como num filme de terror, o assassino ouvira uma voz que o instruíra a matar a própria mãe. Segundo ele, a tal voz demoníaca havia explicado que, ao matá-la, ela ressuscitaria e viveria para sempre. Sérgio seguiu as instruções da voz, sua mãe não ressuscitou e, desde então, ele está detido na Casa de Custódia de Franco da Rocha, interior de São Paulo. É para lá que são enviados os chamados autores de crimes inimputáveis – o palavrão significa que o juiz entendeu que o réu não tinha consciência do que estava fazendo no momento do crime e, logo, não pode ser julgado como um assassino comum.
Após ser examinado por psiquiatras, as alucinações de Sérgio mostraram ser sintomas de esquizofrenia paranóide, uma doença mental comum que apenas em pouquíssimos casos torna sua vítima violenta. “Esse é um típico caso de crime motivado por doença mental”, diz o psiquiatra Carlos Eduardo Garcia, que há 21 anos acompanha e medica os pacientes da Casa de Custódia.
“Mas esses assassinatos estatisticamente são raros”, afirma. “A maioria dos crimes considerados bárbaros são cometidos por pessoas com distúrbio de personalidade anti-social, os chamados psicopatas.”
Nos Estados Unidos, estima-se que nada menos que três quartos da população carcerária tenha o transtorno de personalidade anti-social.
“Não temos dados desse tipo no Brasil”, diz o psiquiatra Paulo Sérgio Calvo, um dos encarregados de examinar os presos da Casa de Detenção do Carandiru, em São Paulo. “Se eu tivesse que fazer uma estimativa, acredito que essa proporção, no Brasil, não chegaria a um quarto dos presos”, afirma. Para ele, mesmo que a proporção de psicopatas nos presídios brasileiros seja menor, são eles que encabeçam as rebeliões e convencem os outros presos a participarem dos motins. “Ainda que o número deles não seja tão expressivo, o estrago que eles provocam é enorme. Se conseguíssemos diagnosticar todos esses casos e separá-los dos outros presos, muitas dessas rebeliões deixariam de acontecer.” Mas, afinal, qual a origem desse transtorno? O chamado psicopata nasce assim ou é fruto do ambiente em que vive?
A resposta para essa pergunta vem gerando controvérsias desde o século XVIII, quando o médico austríaco Franz Gall defendia a tese de que ninguém se torna criminoso, já se nasce criminoso. Gall foi um dos mais importantes representantes da frenologia, a teoria de que era possível identificar um assassino frio por meio de algumas saliências no crânio. A idéia é que havia no cérebro uma área específica para a violência. Se essa área fosse grande, era melhor apressar o exame do paciente e sair logo da sala. Mas a realidade não se encaixou na sua tese e as idéias de Gall e outras explicações biológicas para a origem da agressividade caíram em descrédito na mesma época em que a psicanálise buscava modelos que não tivessem necessariamente uma origem orgânica para explicar a violência.
Até hoje, os pesquisadores se dividem. De um lado estão os que procuram encontrar no cérebro a origem da sociopatia. Uma pesquisa realizada pelo neurologista Adrian Raine, da Universidade de Southern California, em Los Angeles, analisou imagens computadorizadas de cérebros de sociopatas e sugeriu que eles apresentam algumas alterações no córtex frontal, a parte do cérebro que fica logo abaixo da testa e que é considerada responsável por nossa capacidade de sentir emoções. Resta saber se essa alteração é genética ou fruto de algum distúrbio psicológico adquirido.
Do outro lado estão os que acreditam que a insensibilidade dos psicopatas é fruto de um trauma, como violência ou abuso sexual na infância. Enfim, um problema de software e não de hardware. Mas todos parecem concordar num ponto: não deve existir apenas um fator para que alguém se torne um assassino frio. Problemas neurológicos, doenças mentais, abuso sexual e violência infantil, todas essas causas são plausíveis para explicar o que torna algumas pessoas mais vulneráveis a cometer esses crimes.
“É preciso reconhecer que existe uma série de outros problemas psíquicos que podem levar alguém à violência que não se enquadram nem na doença mental nem na sociopatia”, diz o psiquiatra José Cássio do Nascimento Pitta. Ele foi o psiquiatra do estudante de medicina Mateus da Costa Meira, preso após disparar, em 1999, cerca de 40 tiros de metralhadora na platéia de um cinema num shopping em São Paulo, matando três pessoas e ferindo outras cinco.
Mateus não foi considerado nem um sociopata nem um doente mental. Qual o motivo dos disparos? Pitta se recusa a falar do seu paciente por “questões éticas”, mas afirma que há uma série de outros fatores ligados ao desenvolvimento da personalidade que, aliados ao uso de drogas, podem servir de estopim para um ato violento. No exame que a polícia fez para saber se o estudante estava sob o efeito de tóxicos no dia da chacina, foram encontrados vestígios de cocaína.
Há o que fazer para prever esse tipo de crueldade? Os especialistas dizem que os esforços devem se concentrar no combate à violência e ao abuso infantis, que são mais recorrentes em locais onde predomina a pobreza. “É preciso coibir com rigor a violência contra crianças, porque quem é vítima dela tende a deixar de ser a vítima e se transformar no violentador no futuro”, afirma o psicoterapeuta paulista Roberto Ziemer. “A formação de uma criança não é um problema que só diz respeito aos pais dela, já que, no futuro, todos pagamos pelos crimes que tiveram origem na violência e no abuso sexual.” Ziemer defende a tese de que todo assassino perverso sofreu alguma forma de abuso na infância, seja o terrorista Bin Laden, Hitler ou o “Maníaco do Parque”.
O psiquiatra Paulo Sérgio Calvo, da Casa de Detenção do Carandiru, diz que outra forma de evitar a formação de assassinos frios é fazer com que a legislação aumente a parcela de responsabilidade dos pais sobre os atos cometidos por seus filhos. “O engajamento deles tem que ser cobrado”, diz o psiquiatra. “As pessoas parecem esquecer que o ambiente em que essas crianças vivem pode determinar se vão ou não se transformar em assassinos frios no futuro.”
Outro ponto polêmico que divide os especialistas é o papel da pobreza na formação de assassinos frios. “Ela pode até não explicar todos os casos, mas é claro que existe uma relação, mesmo que indireta”, afirma o psiquiatra do Imesc Marco Antônio Beltrão. “Em regiões pobres, há mais famílias desestruturadas, mais abuso e violência infantil e, conseqüentemente, mais assassinos frios.” Para o psicólogo Antônio Carlos Amador Pereira, da PUC de São Paulo, esse elo é mais direto: “Viver numa sociedade que celebra o consumo e se sentir excluído dessa festa é claro que torna uma pessoa muito mais vulnerável ao ódio e à violência”, diz. “Por que você acha que alguns seqüestradores vão direto a um shopping center depois que recebem o resgate?”
Além do consumo, o psicólogo diz que a violência tem outro atrativo para jovens excluídos: a sensação de poder. “Com uma arma na mão, uma pessoa se sente uma espécie de Deus, com o poder sobre a vida e a morte de outro ser humano”, diz o psicólogo. “É preciso que a violência deixe de ser encarada como a única forma, ainda que breve, de viver intensamente.”
Para saber mais
Na livraria:
Base Instincts - What Makes Killers Kill, de Jonathan H. Pincus, W.W. Norton & Company, Londres, 2001
Emotions: The Science of Sentiment, de Dylan Evans, Oxford, 2001
Into The Mind of a Killer, Revista Nature, Março de 2001, vol 410
Quatro tipos de matadores
TED KACZYNSKI (UNABOMBER)
CRIME - Matou três pessoas e feriu 16 enviando bombas pelo correio a executivos de empresas de tecnologia.
DIAGNÓSTICO - Esquizofrênico. Apesar de ser uma situação rara em alguns casos essa doença mental pode ser o estopim para a violência.
JEFFREY DAHMER
CRIME - Matou 17 rapazes e comeu seus órgãos.
DIAGNÓSTICO - Psicopata. Dahmer tem todos os traços do portador de distúrbio de personalidade anti-social (o chamado psicopata). Quando foi preso, em 1991, mostrou os corpos que mutilava e comia sem manifestar emoção.
CHARLES MANSON
CRIME - Participou do assassinato e mutilação de mais de cinco pessoas – entre elas Sharon Tate, mulher do cineasta Roman Polanski, que estava grávida de oito meses.
DIAGNÓSTICO - Abuso na infância. Não conheceu o pai e a mãe ficou presa por roubo durante boa parte da infância de Charles.
MATEUS DA COSTA MEIRA
CRIME - Em 1999, disparou uma submetralhadora contra a platéia de um cinema em São Paulo. Três pessoas morreram e cinco ficaram feridas.
DIAGNÓSTICO - Surto causado por drogas. Mateus tinha consciência do que fazia e não foi considerado psicopata. Tinha problemas de personalidade e usava cocaína no momento do crime.
Leia mais sobre violência no especial da Superinteressante:
Por um Brasil menos violento – uma investigação inédita que traz tudo o que é preciso fazer para diminuir a insegurança no Brasil
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