Uma pesquisa pergunta para o brasileiro se ele concorda com a frase “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. O resultado é que 65% diz que concorda. A mesma pesquisa conta que 91% das pessoas entrevistadas concordam total ou parcialmente com a prisão do marido que bate em mulher. Os organizadores da pesquisa deveriam ter cuidado com esses dados, que apontam sentidos distintos, mas, não creio que tiveram, saíram por aí com conclusões apressadas. Os meios de comunicação embarcaram nisso afoitamente, desconsiderando essa diferença de julgamentos. Os ativistas de internet, então, se lambuzaram no descuido!
Na novela da Rede Globo, Vida em família, Helena comenta com o marido: “mas como assim, quer dizer que o homem não consegue conter seus impulsos sexuais?” Helena toma gato por lebre: acha que a pesquisa está dizendo que o estupro vem de impulsos sexuais masculinos. Helena erra porque tudo foi montado na imprensa para ela, leitora, errar.
Se a tal pesquisa que chegou às mãos de Helena diz algo de válido, o faz apenas quanto às confusões próprias do senso comum, e assim mesmo só se tivermos boa vontade para com o que foi divulgado. Levando em conta o grau de dificuldade de nossa população em interpretar textos, já atestada por órgãos internacionais de pesquisa, deveríamos entender que a palavra “merece”, na frase “mulheres que usam roupas mostram o corpo merecem ser atacadas”, pode muito bem ser interpretada não como uma condenação à mulher, mas simplesmente como uma constatação válida. Quem pensa que estupro é algo oriundo única e exclusivamente do que popularmente chamamos de tesão recolhido, pode muito bem dizer que mulher que mostra o corpo demais vai acabar mesmo recebendo algum tipo de ataque.
No entanto, vamos sair das imagens do senso comum e suas reiterações pela mídia. Vamos às informações de quem pesquisa efetivamente o estupro. No Brasil, só 7% (mais ou menos) dos estupros são de responsabilidade de uma pessoa que a vítima não conhece. E entre estas, nem todas atacam as vítimas por razões de desejo de sexo de uma maneira que não doentia. Em geral são pessoas presas às fixações de fantasias pré-adolescentes, que deveriam ter sido sublimadas. Todo o resto é composto por estupradores que são maridos, ex-maridos, namorados e ex-namorados e, é claro, tios, pais, amigos, amigos da família etc. Essas pessoas, como se vê, não desconhecem o corpo da mulher atacada. Muitos já as tiveram na cama ou já a conhecem em situações variadas com pouca roupa. O ataque surge aí de modo quase que totalmente desligado de desejo, mas vinculado ao fato de quem deveria obedecer pode não estar obedecendo.
Nisso tudo, há mais mandonismo que “machismo”. Aliás, “machismo” é uma palavra que não tem mais servido para nada. Antes esconde coisas que revela. Esse mandonismo, essa ideia de que há quem deva ser subjugado, também é exercido contra o homem que deve ser servil. Na cadeia, por exemplo, nenhum chefe se impõe sobre seus servos senão com o estupro, e não com um murro na cara. No lar ou nas imediações, primeiro vem o tapa ou murro na cara, depois o estupro, para mostrar para o serviçal que, no limite, seu corpo vai obedecer sem que o cérebro ou o coração sejam consultados. Coincidentemente o serviçal, nesse caso, é a mulher. Mas ela pode ser substituída como objeto de humilhação, sabemos bem disso.
Há uma distância entre a imagem do estupro e suas causas e o estupro que ocorre. Qualquer pesquisa boa sobre o assunto deveria, antes de tudo, ter ficado atenta a essa distância. Os militantes feministas também deveriam ter notado isso. Não o fizeram.
Paulo Ghiraldelli, 56, filósofo. Autor do recente A filosofia como crítica da cultura (Cortez, 2014).
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