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sábado, 5 de abril de 2014

Estupro não é por pouca... roupa / Sônia T. Felipe

Já escrevi em outro lugar e repito aqui: se o tamanho da roupa fosse a causa do estupro, bebês, idosas, deficientes e freiras jamais conheceriam essa violência.
Estupro é uma forma de assalto. O alvo do assalto é a parte sexual do corpo, a genitália e seus arredores, de pessoas vulneráveis. A vulnerabilidade pode ser o estado permanente da pessoa sexualmente assaltada, ou um estado transitório, um momento do qual o violentador se aproveita, em que a pessoa não tem como se defender, para produzir o assalto sexual, o estupro, ainda que a pessoa assaltada não esteja permanentemente numa condição vulnerável, como ocorre com crianças muito pequenas, com deficientes ou com idosas.
Estupro é violência física que tem exclusivamente como agente o macho inconformado com o fato de que os corpos das pessoas não disponibilizam o gozo que ele tanto almeja.
Estupro é prática de homens machistas até a raiz dos cabelos, criados em religiões machistas, formados em escolas machistas, educados em famílias machistas. Dizer que o tamanho da roupa de uma mulher é a causa que produz o estupro é desculpar os homens por sua barbaridade sexual, típico na cultura brasileira, onde são feitas essas pesquisas pretensamente neutras que acabam por reforçar a violência sexual sofrida pelas mulheres, pelas crianças, pelas idosas, independentemente do tamanho da roupa.
Vai alegar na Europa que o tamanho da roupa foi o que provocou o estupro, vai! Lá as pessoas se despem totalmente em muitos lugares, incluindo parques nos centros urbanos, para se exporem à luz do sol sem a qual não há formação da D, que fixa o cálcio nos ossos e ajuda a combater a depressão por falta do sol. Vai pesquisar nos países da Europa quantas pessoas foram estupradas por estarem peladas ao sol! Nunca isso aconteceu.
Fora do Brasil, esses brasileiros que levam na cabeça o seu membro viril, mais parecendo unicórnios do que homens, se comportam direitinho. É, tem homem que só tem isso bem no centro da cabeça e daí fica parecendo essa figura estranha.
Por que será que em lugares onde tais teses machistas não imperam, os homens se contêm? Se a pouca roupa fosse o caso, o estupro correria solto também na Europa. A ideia da pouca roupa é puritanismo, mais uma forma de repressão contra as mulheres.
E há mulheres que juntam sua voz para afirmar tais barbaridades, perpetuando assim a cultura machista, fálica e unicórnica na qual suas filhas meninas terão que crescer, submetendo suas escolhas estéticas ao padrão violento da sexualidade unicórnica, imposto a elas como limite para expressão de seu gosto pessoal. Estupradores usam seu pênis como um chifre: querem penetrar com violência o que não está aí para servi-los.
Bovinos usam seus chifres para se defenderem de ataques. Homens estupradores usam seu pênis para atacarem as mulheres que não estão aí para lhes oferecer o que cobiçam. Sexualidade violenta. De machos mal resolvidos. Impondo a todas as mulheres um padrão de vestir-se, quando não é o vestido que causa o estupro, é a cabeça mal formada do homem, deformada por conceitos violentos de superioridade da raça viril que o leva a penetrar o corpo de uma mulher usando a mesma estratégia do assalto à mão armada. Nesse caso, conforme escrevi num artigo há quase vinte anos, a arma é o pênis (para uma leitura maior, podem ver o livro: Estupro e atentado violento ao pudor, que escrevi em co-autoria com a jurista psicanalista Jeanine Nicolazzi Philippi, editado em 1998 pela Edufsc).
O corpo é o lugar sagrado no qual cada subjetividade se forma, o suporte sem o qual não há espírito, nem de homem, nem de mulher. Assaltar o corpo para realizar um ato que só tem sentido se consentido, é uma forma de violência que quer impor um padrão de sexualidade unicórnica, fálica a todas as mulheres. Funciona como funciona o ato terrorista: basta estuprar uma delas e todas as demais levam a lição.
No dia seguinte ao aviso de que a pouca roupa foi o que causou o estupro, todas as mães (por vezes os pais), em desespero, passam a examinar o tamanho da blusa, do short e da saia da filha quando sai para a noite ou para o trabalho. E é assim mesmo que a sexualidade unicórnica imposta pelos homens e reverenciada pelas mulheres vai forjando um tipo de sexualidade da qual a mulher foi excluída, na qual ela não pode se expressar, à qual ela sucumbe. Infelizmente, as mulheres foram educadas para achar que sua sexualidade se resume em atender aos apelos do órgão pendurado no corpo de um homem. A sexualidade de uma mulher não é fálica. Quando o falo se impõe como padrão, destino e sujeito da interação sexual, a mulher é derrotada. Estupradores nada mais fazem do que derrotar aquela que elegem para assaltar sexualmente. E muitas mulheres, mesmo as que não sofrem estupros na forma em que o conceito se impôs, são estupradas em sua sexualidade por esse padrão unicórnico imposto ao sexo delas.
Culpar a mulher, a criança, o bebê, a idosa, o idoso (mais raro, mas acontece), o rapaz, por sofrerem um estupro é da mesma ordem que culpar qualquer pessoa por levar sua carteira com dinheiro e documentos consigo e sofrer um assalto.
Você foi assaltada, assaltado? Estava pedindo, não é mesmo? Quem mandou andar com a carteira no bolso! Se as mulheres têm que vestir mantos dos pés à cabeça (e burkas) para não despertarem nos unicórnios estupradores qualquer impulso físico, então a mesma lógica deverá ser aplicada para que não haja mais assaltos: ninguém mais deve andar com carteira, com celular, com relógio, com carro, ter casa, objetos de valor na casa... nada nada que dê ideia ao assaltante de usar de violência para obter o que deveria ter apenas como fruto de sua conquista.
Não é diferente com sexo. Quer ter uma interação sexual? Tá precisando? Dê-se ao trabalho de conseguir isso com o consentimento da outra pessoa. Se não invertermos essa pesquisa machista, já, daqui a pouco esse instituto vai fazer nova pesquisa induzida e colocará lá a inteligente questão: Você acha que haveria assaltos na rua se ninguém mais saísse à rua? Êta gente inteligente, não é mesmo? Isso sim é uma vergonha nacional.
Sinto vergonha alheia, por ver homens e mulheres defendendo o estupro em respostas induzidas, e por ser mulher e ver gente (instruída) induzindo as pessoas a defenderem o estupro.
Divulgar o resultado de uma pesquisa mal feita como essa tem como resultado reforçar o que dizem ter ido investigar. Não foram pesquisar coisa alguma. Fizeram a pergunta de tal modo que automaticamente 65% dos entrevistados escolheram a resposta mais rápida, para parecerem inteligentes. Pesquisa de fatos, genuína, não induz nada. A indução na resposta tem o propósito de facilitar a contabilidade dos dados obtidos. Os dados obtidos são exatamente os que foram oferecidos ao entrevistado.
Portanto, a divulgação do resultado da pesquisa deveria ser assim: Pesquisadoras/es do IPEA creem que o estupro se deva à pouca roupa das mulheres. Ponto. Isso seria divulgar o que está na cabeça de quem formatou a pesquisa, aliás, péssima/o cientista. Fiz muita pesquisa nas ruas em toda a minha vida. E analisei muitas também, justamente nos 15 anos em que mais estudei o estupro e fiz palestras sobre ele.
Quanto ao unicórnio, que uma leitora lamentou, nos comentários de um compartilhamento, ter sido usado como metáfora da cultura fálica instalada pelo nosso país afora, o fiz justamente por ser um animal criado pelo imaginário com um design nada sutil do falo pontudo bem no meio da cabeça.
Esse design me leva a crer que quem o criou tinha exatamente um falo no meio de sua cabeça e criou a figura para que todas as mulheres venerem o falo. Não é de graça que induzem todas as mulheres a acharem lindinho o unicórnio. Fiquem espertas com imagens fálicas. É assim que plantam o falo na mente das mulheres, ocupando um espaço que elas deveriam cultivar para deixar florescer a sua própria sexualidade, com sua singularidade que não evoluiu para reverenciar o falo. Que os homens reverenciem seus falos. Aliás, a maior parte só sabe mesmo é fazer isso. Temos coisas mais sérias para tratar quando tratamos de expressar nossa sexualidade. Tá faltando admiração pelo que é da mulher. Tudo está voltado para o que é do homem. Tá havendo uma falta grande... e não é de roupa não.

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