A repulsa dos médicos brasileiros a vinda de cubanos para atuar em cidades do interior é uma espécie de reserva de não-mercado. É mais ou menos como a TV quando compra a exclusividade de um jogo e não transmite. Nem permite que outros canais transmitam. Os médicos brasileiros não querem trabalhar nas localidades mais distantes ou com menos estrutura. Mas querem impedir que outros o façam em seu lugar.
O grave do problema é que isso não se trata de um amistoso da seleção ou um jogo da Libertadores. É a saúde das populações mais pobres que está em permanente risco. E a dignidade da pessoa humana, fundamento da República, não se submete a esse tipo de abuso de poder. O direito à vida ou a saúde não pode ser sufocado pela onda de preconceitos, nem ficar refém de corporativismos. O estado democrático de direito é antropocêntrico e não admite recompensa pelo egoísmo. Para criticar a vinda de cubanos, de tudo um pouco já se ouviu. Que os profissionais são de baixa qualidade, que parecem domésticas, que o espanhol caribenho é difícil de entender. Os médicos cubanos ora são hostilizados por serem agentes disfarçados da guerrilha comunista ora por serem escravizados pela ditadura. Os argumentos não se sustentam em pé, porque na verdade só existem na aparência. Escondem a volúpia pela exclusividade, a proteção ao direito de não atender. Do lado da imprensa, uma indisfarçável torcida pelo fracasso, com receio, que melhor caberia aos partidos políticos, de um possível uso eleitoral de bons resultados.
Escassez de Hipócrates nesse excesso de hipocrisia. Se os brasileiros estivessem dispostos a trabalhar nas localidades em que faltam médicos, coincidentemente as de menor IDH do país, nenhum estrangeiro teria sido convocado a atuar nessa medicina sem fronteiras. Mas os representantes dos médicos brasileiros optaram por serem eles mesmos as fronteiras. Parte considerável dos cubanos tem perfil internacionalista e já exerceu a profissão em países estrangeiros e em situações de pouca ou nenhuma estrutura, como na África. É provável até que tenham mais experiência em tratar o pobre do que a maioria de seus críticos locais. Na imprensa, os que mais se rebelam contra o sistema adotado na parceria são justamente aqueles que vêm sustentando, há tempos, os benefícios da terceirização. Com a agravante de que neste caso, não existe o empregador inescrupuloso que opta por ela para fugir a altos salários ou obrigações trabalhistas. Afinal, a ganância capitalista sempre comoveu pouco na mídia. É o caso de refletir seriamente se nós estamos em condições de regular a forma como Cuba remunera os médicos que fizerem parte do acordo, dado que as premissas econômicas dos dois países são bem distintas. Quem sabe não chegamos a conclusão que devemos pagar mais a eles, ao invés de repeli-los. De qualquer forma, a acusação de trabalho escravo é simplesmente grotesca. Não há serviço forçado e tampouco maus tratos; condições degradantes ou servidão por dívidas. Escravo não é o médico que sai voluntariamente de suas fronteiras para trabalhar com pobres por ideais. Escravo é o povo a quem se promete o direito a saúde e se sonega médicos para concretizá-lo. Nada mais revelador do que doutores cearenses se reunindo para xingar os cubanos recém-chegados de escravos. A desfaçatez demonstra que na crítica às condições de trabalho não reside nenhuma solidariedade, apenas o pretexto de combater aquilo que incomoda a si mesmo.
Curioso é que a imprensa, sempre tão mordaz contra várias formas de corporativismo, tem sido condescendente demais com as manifestações dos conselhos de medicina. A mais gritante delas beirou o absurdo e o ilícito: a ameaça nada velada de que médicos brasileiros não prestariam auxílio se um cubano tivesse problemas com um paciente. O ressentimento fala por si só.
Quando médicos optam por combater médicos e não doenças, algo de muito grave se revela na saúde.
Juiz de Direito Marcelo Semer
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