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sábado, 29 de janeiro de 2011

O Abandono não se esquece

O abandono que não se esquece

por Maria De Fatima Jacinto, sexta, 28 de janeiro de 2011 às 18:30
Quantas vezes, ainda que na presença de alguém, temos a nítida sensação que em qualquer momento podemos ser abandonados? Quantas vezes, diante de um atraso, sentimos verdadeiro pânico? Quantas vezes nos desesperamos diante da possibilidade da pessoa amada nos deixar?

Quem viveu o abandono durante a infância pode sentir um medo incontrolável de ser deixado, procurando evitar a todo custo ser abandonado novamente. Quando falamos de abandono não é apenas em casos em que uma criança é literalmente abandonada por seus pais, a quem se espera ser amada e cuidada, mas aquelas que são abandonadas através da negligência de suas necessidades básicas, da falta de respeito por seus sentimentos, do controle excessivo, da manipulação pela culpa, ainda que ocultos, durante a infância. Crianças abandonadas, psicológica ou realmente, entram na vida adulta, com uma noção profunda de que o mundo é um lugar perigoso e ameaçador, não confiando em ninguém, porque na verdade não desenvolveu mecanismos para confiar em si mesma.

O abandono está diretamente relacionado com situações de rejeições registradas na infância e que pode se intensificar durante toda a vida, principalmente quando se vivencia outras situações de rejeição e/ou abandono. Cada vez que vivenciamos situações de perda é como se estivéssemos revivendo a situação original de abandono, do qual dificilmente se esquece. Podemos sim, reprimir, fugir desses sentimentos, mas raramente conseguimos lidar sem sofrimento diante de qualquer possibilidade de perda e/ou rejeição. Quando somos rejeitados em nosso jeito de olhar, expressar, falar, comer, sentir, existir, não obtendo reconhecimento de nosso valor, principalmente quando somos crianças, é inevitável que se registre como abandono, pois de alguma maneira, ainda que inconsciente, abandonamos a nós mesmos para nos tornarmos quem esperam que sejamos. Sente-se abandonado quem não se sentiu acima de tudo amado e isso pode ser sentido antes mesmo de nascer, ainda no útero materno. Pais que rejeitam seu filho durante a gestação pode deixar muitas seqüelas, em nós, adultos. Toda criança fica aterrorizada diante da perspectiva do abandono. Para a criança, o abandono por parte dos pais é equivalente à morte, pois além de se sentir abandona, ela mesma aprende a se abandonar.


Conforme percebemos, consciente ou inconscientemente, e ainda muito pequenos, que a maneira com que agimos não agrada aos nossos pais, vamos tentando nos adequar ou adaptar nosso jeito de ser e, aos poucos, vamos nos distanciando de quem somos de verdade, agindo de maneira a sermos aceitos. É quando começamos a desenvolver o que chamamos de um falso self, a um estado de incomunicação consigo mesmo, gerando uma sensação de vazio. O falso self é um mecanismo de defesa, mas que dificulta o encontro com o self verdadeiro. É muito comum que crianças que cresceram em famílias com algum desequilíbrio, proveniente do alcoolismo, agressividade, maus-tratos, ou qualquer outro tipo de abuso, tenha sofrido a negação de seu verdadeiro eu. Crianças que sofreram em silêncio e sem chorar, ou como alguns relatam: chorando por dentro, podem aprender a reprimir seus sentimentos, pois uma criança só pode demonstrar o que sente quando existe ali alguém que a possa aceitar completamente, ouvindo, entendo e dando-lhe apoio, o que nesses casos, raramente acontece. Pode acontecer dessa criança desenvolver-se de modo a revelar apenas o que é esperado dela, dificilmente suspeitando o quanto existe de si mesma por trás das máscaras que teve que criar para sobreviver. 


Alguns pais, inconscientemente, numa tentativa de encobrir sua falta de amor - o que é muito comum, por mais assustador que seja para alguns - declaram muitas vezes seu amor pelos filhos de forma repetitiva e mecânica, como se precisassem provar para si mesmos seu amor, onde as crianças sentem que suas palavras não condizem aos seus verdadeiros sentimentos, podendo gerar uma busca desesperada por esse amor, cuja busca pode se estender durante toda a vida. Ficar só para essas pessoas pode ser uma defesa para evitar novamente o abandono, gerando um conflito constante entre a necessidade de ser cuidado e o medo de ser abandonado.
É muito comum a criança se sentir abandonada em famílias muito numerosas, onde há muitos irmãos, e os pais não conseguem dar atenção a todos. Ou quando os pais constantemente estão ausentes pelos mais diferentes motivos, seja em função do trabalho excessivo, viagens, doenças, internações constantes, ou até pela dificuldade em cuidar de uma criança, não conseguindo fazer com que se sinta amada nem desejada naquela família. 


A sensação de ter valor é essencial à saúde mental. Essa certeza deve ser obtida na infância. Por isso que a qualidade do tempo que os pais dedicam aos seus filhos indica para elas o grau em que os pais as valorizam. Por outro lado, a criança que é verdadeiramente amada, sentindo-se valiosa quando criança, aprenderá a cuidar de si mesma de todas as maneiras que forem necessárias, não se abandonando quando adulta. Assim como crianças que passaram maior parte de seu tempo com pessoas que eram pagas para cuidar delas, em colégio interno, distante de seus pais, não recebendo amor verdadeiro, mesmo tendo tudo que o dinheiro pode comprar, poderão ser adultos como qualquer outra criança de tenha vindo de um lar caótico e disfuncional, crescendo sentindo-se pouco valiosa, não merecedora do cuidado de ninguém, podendo ter muita dificuldade em cuidar de si mesma. Ou seja, a maneira com que nos cuidamos quando adultos, muitas vezes reflete a maneira com que fomos cuidados quando crianças.

Precisamos chegar a ponto de perdoar aqueles que de alguma forma nos abandonaram ou que nos causaram uma dor profunda. Para alguns, essa é uma tarefa fácil, mas temos que admitir que para outros, pode ser praticamente impossível. Como perdoar um pai bruto, que o fazia trabalhar desde muito pequeno ou pedir dinheiro, do qual depois consumia em jogos e bebidas? Como perdoar um pai que abusou sexualmente da filha, psicologicamente do filho? Como perdoar uma mãe que trancava os filhos no armário ou no quarto ao lado enquanto se encontrava com outro homem dentro da casa, ou quando deixava os filhos sozinhos em casa dizendo que ia trabalhar, quando na verdade ia se divertir? Como perdoar pais que sempre ocultaram a verdade, insistindo na mentira? Como perdoar um irmão que abusou sexualmente da irmã? Como perdoar uma mãe que demonstrava suas insatisfações através de gritos com seus filhos? Como perdoar um pai que batia constantemente na mãe na presença dos filhos? Como perdoar aqueles que roubaram a infância e inocência de muitas crianças? Como perdoar aqueles que o deixaram, o abandonaram? Não é possível perdoar se o perdão for entendido como negação do fato, pois precisamos sentir a dor que ficou reprimida em nossa alma. Perdoar não significa aceitar, mas se permitir sentir e expressar toda a raiva e dor reprimida e encontrar caminhos saudáveis que podem transformar esses sentimentos em experiência e aprendizado.


Ao nos tornarmos mais conscientes de nossas feridas, entre elas as geradas pelo abandono, podemos agir sobre aquilo que vivenciamos, aprendendo a respeitar nossos sentimentos mais profundos, assumindo a responsabilidade pelas mudanças que podemos nos permitir vivenciar no momento presente. Não se trata de regresso ao lar, porque muitas vezes esse lar nunca existiu. É a descoberta de um novo lar, o qual cada um de nós pode construir, sem mais se abandonar.




Rosemeire Zago :: 

2 comentários:

  1. Olá Rosemeire.
    Li seu artigo e achei muito interessante e muitas características se assemelham com algumas situações e sentimentos por elas geradas pelo momento que estou vivendo em minha vida conjugal.
    Minha esposa iniciou uma nova atividade onde se faz necessário afastar-se por períodos de 3 a 4 dias. Isso tem gerado sentimentos antes jamais vividos, causando aflições e angústias por não entender exatamente o que está acontecendo comigo. Não é sentimento de ciúme ou desconfiança por uma possível traição dela, sentimento esse muito claro e evidente por quem ama alguém, mas percebo que é algo muito mais doloroso e avassalador, principalmente quando percebo a situação de que estou apenas eu em casa, como nesse exato momento em que faço essa postagem.
    Enfim, o que quero dizer é que não sei lidar com essa situação, apesar de meus 43 anos de vida e de experiências vividas, me sinto como uma criança apavorada que não sabe o que fazer! Não quis nem comentar como está o meu relacionamento, o que você já pode imaginar...
    Pergunto: o que devo fazer para diminuir essa sensação que, acredito eu, ao ler suas palavras, se trata de abandono? que atitudes eu devo ter diante dessas "crises"?
    Desde já agradeço.

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    1. Olá...eu não sou Rosemeire e nem sei se ela segue o meu blog. Postei porque achei a postagem pertinente. O que posso sugerir são dois passos: um é você conversar abertamente com ela sobre como se sente. Outro é você arranjar uma atividade que te dê prazer e preencha o seu vazio. Eu também vivo uma situação parecida, pois o meu marido trabalha em São Paulo (Capital) e eu moro no interior. Ele nem sempre pode vir passar o fim de semana comigo e com os nossos filhos, que são adolescentes e têm vida própria. Então procuro preencher o meu tempo com atividades que me agradam. Jamais me sinto abandonada...mas estamos casados faz 20 anos e jamais ficamos longe. Está sendo difícil para todos nós...por outro lado sei que a minha escolha de morar no interior foi correta, já que os meus filhos têm mais liberdade e eu menos preocupações. Você escreveu que a sua esposa fica ausente por causa do trabalho...então não sei se você deve sentir-se "abandonado". E quando entrar em crise, procure pensar em outras coisas...positivas...alegres. No início não é fácil, mas com o tempo tudo se regulariza. Abraço, Bya!!!

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