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sábado, 15 de março de 2014

ESTUPRO = ARMA DE GUERRA / ALDO PEREIRA

Estratégia do estupro

Verdade que o estupro já não pesa tanto como incentivo militar. Menos disciplinadas, guerrilhas e milícias o cometem sistematicamente
Como a Terra Prometida já fosse habitada, Moisés ordenou prévia limpeza étnica como Javé exigira, mas recomendou: "Matem todas as crianças do sexo masculino e todas as mulheres que tiveram relações sexuais com homens. Deixem vivas apenas as meninas que não tiveram relações sexuais com homens, e elas pertencerão a vocês." (Números 31:17-18, "Bíblia da CNBB")
Impossível avaliar a motivação sexual em conflitos armados. Perspectiva de estupro como extensão da pilhagem deve ter facilitado muito recrutamento militar, sobretudo de mercenários sem os quais nem Roma nem Alexandre teriam criado impérios. Eurípides (c. 484-406 a.C.) dramatizou em "As Troianas" como a pilhagem de Troia abrangeu partilha de filhas e viúvas de guerreiros troianos. Lenda, sim, mas inspirada em modelos históricos e pré-históricos: quem se vangloria da própria linhagem deve temperar o orgulho com esta certeza: em perspectiva milenar, todos nós descendemos de estupradores.
Verdade que estupros já não pesam tanto como incentivo militar. Mais comum hoje é que forças armadas os proíbam e punam (embora em geral com escandalosa leniência, como nos denunciados estupros de refugiadas cometidos por militares da ONU). Menos disciplinadas, guerrilhas e milícias cometem estupro sistemático em alta escala.
Foi assim na guerra de partição da ex-Iugoslávia e tem sido no banditismo endêmico que na África se mascara como guerras civis e conflitos tribais. Estímulo incidental dissimulado: comércio de armas, controle de minas (diamantes, ouro) e outros secretos interesses extracontinentais.
Estupro estratégico não se confunde com prática oportunista como a dos estupros de dezenas de manifestantes em recentes distúrbios do Egito. A estratégia se caracteriza quando inspirada por ódio. Na invasão e subsequente ocupação da Alemanha, soldados soviéticos que violavam alemãs (estimativas vão de 100 mil a 2 milhões de vítimas) racionalizavam a brutalidade como vingança das atrocidades nazistas na URSS.
Ódio étnico conjuga animalidade com interesse político de forçar emigração ou destruir coesão familiar. Embora injusto, em muitas sociedades o estigma de estuprada causa repúdio de esposas e desqualifica solteiras para o casamento. Na ex-Iugoslávia, sérvios que violavam muçulmanas bósnias confinadas em "campos de estupro" buscavam satisfação adicional de engravidá-las com "mestiços". Em 1994, motivação semelhante agravou em Ruanda o genocídio de tútsis por hútus. Número estimativo de estupradas: entre 250 mil e meio milhão.
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) estimou haver ocorrido na República Democrática do Congo, apenas em 2009, 130-140 mil estupros, um terço das vítimas crianças, e 13% das quais com menos de 10 anos. Segundo o "American Journal of Public Health", entre 2006 e 2007 o número de estupros na RDC passou de 400 mil. A Anistia Internacional já denunciou que na Colômbia todas as facções da guerra civil praticam "estupro punitivo".
O jornal francês "Le Monde" qualificou suposta prática de estupro sistemático como "arma de destruição em massa" do governo sírio. A reputação de credibilidade de "Le Monde" decerto valida como plausíveis os horrores relatados. Mas, unilateral e hiperbólica, a denúncia parece engajada na campanha de desinformação em favor dos mercenários que a Arábia Saudita paga para desestabilizar a Síria. Afinal, estupro é também tema quente de propaganda.
Texto de ALDO PEREIRA, 81, é ex-editorialista e colaborador especial da Folha
Da Folha de São Paulo de 11/03/2014

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